terça-feira, 18 de novembro de 2014

Partaço ou fracasso? - quando acontece uma cesárea

ainda em casa, na banheira, durante uma contração


Eu tenho muitos medos, o parto não era um deles. Passei anos me preparando para isto, atendi gestantes, ajudei amigas, acompanhei partos, vi um pouco de tudo, e de tudo um pouco mais, li, devorei, me informei, acreditei. Não venho de uma família que tem medo do parto, minha mãe, “natureba”, sempre achou que o normal, era normal, e pronto. Medo eu tinha era do hospital! Esse eu tinha sim!

Não temia a dor, nem o processo, pelo contrário, ansiava por ele, queria viver meu momento intensamente (e o vivi), queria parir, assim, igual bicho, parir minha cria, pega-la no colo, e pronto. Estava feliz em me tornar mãe, tão confiante que daria tudo certo que nem mala de maternidade eu aprontei pra ir pro hospital caso precisasse...

Existe uma distância muito grande entre o parto romantizado dos vídeos e o parto real, entre o parto idealizado e o que aconteceu, sempre, como doulas, explicamos isso. Eu não achava que passarinhos iam cantar na minha janela quando minha filha nascesse, eu sabia que ia doer, ter sangue, sujeira, gritos, medo, e era tudo isso que eu queria viver.

Os vídeos são de fato reais, a entrega, o amor, a alegria, isso tudo acontece de fato! Mas a edição pode fazer tudo parecer mais simples e rápido do que de fato é, e não mostra a luta interna da mulher que está atravessando sua jornada naquele momento. Eu não me iludia com vídeos pois tinha visto diversos partos pessoalmente, acompanhado durante horas e horas as mais diversas histórias de mulheres corajosas, eu sabia que ia doer e ia dar medo e podia demorar e que dependia unicamente de mim. Mas acreditei que tudo valeria a pena (e valeu) e que parir era natural e pronto.

Vivemos num país onde no setor privado 90% ou mais dos nascimentos são por via cirúrgica, e os partos normais são recheados de violência, descaso, despreparo, abandono. Nesse cenário, encontramos no parto humanizado um alento, um oásis, e por isso o enfatizamos tanto e o colocamos tão em voga. Parir pode ser lindo e extremamente gratificante, queremos que as mulheres saibam disso; saibam que, como dizia minha amiga Pilar, não é um bicho de sete cabeças, é de uma cabeça só (ou duas se forem gêmeos rsrs). Queremos acima de tudo que as mulheres recuperem sua auto-confiança, em si e em seus corpos, que saibam que sabem parir, que podem, que conseguem, que são fortes, capazes, mamíferas, que seus corpos não são defeituosos, e que o parto normal é mais seguro e pode ser uma experiência muito intensa e gratificante, como um verdadeiro ritual de passagem na nossa vida. E é melhor, muito melhor, pro bebê.

E nessa realidade que exaltamos tanto o natural, podemos acabar esquecendo que cerca de 15% (segundo nos diz a OMS baseada em estudos científicos de qualidade) das mulheres precisarão de uma cesariana. Não falo das que queriam a cirurgia, ou que foram ludibriadas por mitos e terrorismos disseminados pela cultura e pelos próprios médicos, falo das que queriam parir, acreditavam no parto, e não conseguiram.  Não parir dói.

Essa foi a lição que a vida quis me dar, eu caí na estatística. Cerca de 5% dos partos domiciliares planejados se transformam em cesarianas. Tive uma gestação completamente saudável e caí na roubada de “nunca achamos que vai acontecer com a gente”. Eu queria escrever meu relato de parto dizendo “eu consegui”, mas não consegui. Eu queria aquela alegria, aquela realização, aquela festa. E então quando acabei numa cesariana perdi duas coisas, perdi meu parto e perdi a festa.

Não foi por mal, eu entendo, eu também me senti assim quando amigas queridas não tiveram seu parto desejado, temos empatia, lamentamos a frustração alheia. Mas senti que ao invés de alegria e comemoração (pois sim eu estava feliz com minha filha, apesar de triste pelo meu não parto), houve silêncio e tristeza. Ao invés de mensagens carinhosas de “você conseguiu!” houve ausência. Eu não ficava feliz em ver amigas tristes por minha causa, só reforçava o sentimento de fracasso. Eu sabia que estavam “respeitando meu momento”, e com receio de como eu estava aceitando aquilo. Eu sabia que estavam dando tempo ao meu luto, e me dando espaço pra elaborar. Mas eu sentia que já não bastasse não ter parido, ainda me foi tirado o direito de comemorar... Não parir foi triste, como é triste cada vez que almejamos e nos dedicamos a conseguir algo e não conseguimos, mas não foi uma tragédia.

Acredito que toda cesárea indesejada implica em um luto do parto que não tivemos. E lamentar a cesárea não é ser ingrata (já que foi necessária e extremamente útil) e não é não amar o filho (incrivelmente algumas pessoas acham que quem não gostou de sua cesárea está automaticamente dizendo que lamenta o filho estar saudável  -- nunca diga a uma cesariada “O importante é que seu filho está vivo”)

E foi aí que passei a observar mais o discurso por trás da comemoração do parto. Não escrevo para falar de mim, mas uso o que vivi para falar do que aprendi. Sei que muitas das falas que vejo não são escritas ou verbalizadas na intenção de dizer o que eu leio, pois lemos o mundo a partir dos nossos próprios olhos, e os meus estão matizados por um sentimento de “menas” (é, isso mesmo.. por que não parir dói).

Decidi me expor, numa tentativa de que minhas reflexões ajudem a dar voz a todas que se calam. Quando publiquei meu relato de não-parto e quando pedi ajuda nos grupos para entender e elaborar o que aconteceu, não esperava receber a quantidade de mensagens privadas que recebi. Pessoas que se identificaram, que viveram coisas parecidas, que se sentiam de forma semelhante, e tinham medo de expor, de falar, de contar; medo dos julgamentos. Não falo isso num tom vitimista, pois o pior julgamento é o auto-julgamento. Mas como alguém que se graduou em letras e se interessava por linguística e análise do discurso, comecei a perceber como a necessária exaltação do parto humanizado (em um Brasil de cesáreas criminosas) acabava por ser não intencionalmente deletéria a quem precisou de uma cesárea, agora eu sentia na pele, que lição!

Acredito que devemos nos responsabilizar por nossos erros e escolhas, mas tomar cuidado para não cair num discurso de culpabilização da mulher; para que o parto, que é natural e fisiológico, não se transforme num tipo de ‘meritocracia’. Claro que como parir no Brasil é algo muito difícil, a mulher muitas vezes tem que ter muita garra, dedicação e convicção pra correr atrás do parto dela, bancar mudar de médico na reta final, abandonar o plano de saúde, peitar (ou aguentar) comentários dos familiares, pedir ajuda, procurar uma doula, bancar suas escolhas, se endividar, estudar muito. Claro que admiro e respeito muito a força dessa mulher que corre atrás do parto humanizado porque sabe que é o melhor pra ela e pro seu bebê, não é fácil bancar ir contra todo o sistema e cultura, não é fácil, e é sim uma vitória. Mas pra mim, com minha leitura de “não parideira”, quando leio alguém dizendo “parabéns, mereceu muito esse parto!” eu também posso ler “então quer dizer que não mereci?”. Na antítese da comemoração da “parideira” está o silêncio reservado à “fracassada”. Sei que somos nós que nos colocamos assim, e é justamente o que quero propor, olharmos com mais carinho para nós mesmas.

Quando um parto acontece, comemoramos. Quando ele não acontece, ficamos buscando culpas e culpados – “foi algo que fiz? Alguém que estava comigo? Foi algo que pensei? Será que senti algo errado?”. Quando tentamos achar motivos para o não-parto de alguém dizendo “se você não estivesse tão ansiosa talvez tivesse parido” – “será que você não tava pensando demais” – “será que você estava travando alguma coisa?”; quando fazemos isso, não estamos sendo muito diferentes de quem atribui o estupro a saía curta que ela vestia... “se você não estivesse vestida dessa forma, andando na rua essa hora, se se se...” – nada disso ajuda.

Veja bem, não estou dizendo que o emocional não afeta o físico, eu seria ridícula se dissesse isso visto que sou acupunturista e é meu trabalho interpretar também como o físico expressa o emocional e vice e versa, porém penso que devemos ter cuidado para não pecar ao cair num reducionismo simplório que acaba apenas por atribuir culpas. Quando busquei ajuda para entender meu não-parto encontrei basicamente dois tipos de respostas (com exceções), as pessoas que amaciavam tudo dizendo “deixa isso pra lá, você foi ótima, não pense nisso, não fique tentando entender, aceite”, e as pessoas que tentavam cavocar a minha trava emocional, o velho “onde foi que você errou”.

Sabe, quando uma mulher sofre um aborto espontâneo, ela tem a tendência em achar culpas... é a emoção forte que ela passou dias atrás, é a tinta de cabelo que ela usou, foi aquele chazinho que ela tomou antes de saber que estava grávida... Perdas gestacionais acontecem, principalmente nas primeiras semanas, nem sempre (ouso dizer praticamente nunca) é por causa de X ou Y. A mulher que culpa a tinta de cabelo que ela usou pela sua perda gestacional nem lembraria que mudou a cor de suas madeixas naquela semana caso o bebê tivesse ‘vingado’. O mesmo se dá com partos, se eu tivesse parido, ninguém estaria falando de X e Y, mas como não pari... essas coisas devem ter atrapalhado, só pode.

Ah é cansativo isso! “Parir é vencer o sistema, se não pariu é por que fez algo de errado”. Não sejamos simplistas, esqueceram dos 15%? E mesmo que não se enquadre neles, as mulheres tem o direito de serem respeitadas e desejarem um parto sem precisar se formar em obstetrícia pra isso. Infelizmente hoje em dia é preciso estudar muito e lutar muito, mas deveria ser um direito básico, a culpa não é das mulheres.

Eu acredito que o parto é um evento tanto físico quanto emocional e espiritual, há muita coisa em jogo e muita coisa envolvida. Acredito que existam as chamadas “distócias emocionais”, e penso que para conseguirem impedir um parto de acontecer (isto é, irem contra a biologia e transformarem o fisiológico em patológico) devem ser distócias “fortes”, algo pesado talvez. Mas cada mulher é uma história e mesmo mulheres com histórias de traumas conseguem parir, as vezes não apesar do sistema (obstétrico), parem no sistema mesmo, parem com medo, deitadas, ouvindo gritos, tendo uma assistência violenta, e mesmo assim, elas parem!

Experiências psicológicas influenciam no desenrolar de um parto, mas será que são sempre o fator determinante? Quando você não consegue parir, sempre alguém vai tentar achar uma trava, seja por que você estava pouco informada, ou informada demais, desligada do processo ou pensando demais... Que tal pararmos de culpar as mulheres por coisas que fogem à vontade delas?

Nós sabemos que o neocórtex ligado atrapalha, mas quantas mulheres já vimos parir extremamente racionais, ligadas e conscientes? Nós sabemos que ter medo (da dor, do processo, de virar mãe, da reação do marido etc) pode travar o processo, mas quantas mulheres já não pariram com medo em corredores de hospitais, em calçadas, em ônibus, sozinhas? Parir é no corpo também, é na cabeça, mas não só nela. Atribuir toda e qualquer coisa que deu errado à distócia emocional é de uma enorme pobreza e se você não é o terapeuta da pessoa em questão, melhor guardar o seu pitaco em silêncio.

Vamos parar de dizer que a mulher não pariu por que estava ansiosa ou porque pensou demais ou temeu demais ou se entregou de menos. É claro que existem questões que podem prolongar um parto, aumentar uma dor, ou até mesmo travar um processo. Mas da mesma forma que você pode ter um desarranjo intestinal por que ficou muito nervosa, você pode ter o mesmo desarranjo por que comeu uma comida estragada... e ai? Foi uma trava emocional que levou o seu karma a fazer você comer aquela comida podre pra então aprender com sua dor de barriga?! Que tal forçar menos a barra da trava emocional?

O psicossomático existe, isto é claro. Raiva pode causar dor de cabeça e preocupação pode causar dores nas costas. Não se hidratar o suficiente e comer mal pode causar dor de cabeça, má postura pode causar dores nas costas. As vezes o estômago dói por que estamos “digerindo mal nossa vida”, as vezes você até está emocionalmente bem, mas tomou café demais... Acho ingênuo, superficial e perigoso cairmos em generalizações do emocional ao olharmos o parto alheio, considero esse tipo de julgamento tão cruel e errado quanto aquele que atribui câncer a uma pessoa por ela ser ‘egoísta’ (sim, já vi esse absurdo sendo dito, compaixão passou longe).

Quando não parimos queremos respostas, e tudo bem. Mesmo que sua cesárea tenha sido necessária, você vai querer respostas. Você vai perceber coisas que acha que poderia ter feito de outra forma, que talvez ajudassem, talvez não. E mesmo que sua cesárea não tenha sido necessária, você pode aprender com seus erros, olhar pra trás e perceber onde foi enganada, onde o sistema te engoliu. É doloroso, mas é um exercício válido. E se você perceber travas emocionais, procure um terapeuta, pode ser de grande auxílio. Mas não caia numa culpabilização, agora já foi, passou, tire algo dessa situação, chore se sentir que precisa, mas não remoa além do necessário. Mulheres conseguem parir mesmo odiando a situação, implorando por uma cesárea, não desejando um parto normal, elas parem, eu não pari, eu queria parir, paciência...

Fui respeitada por minha equipe e isso me ajuda hoje a refletir com calma sobre a situação, desejo que mais mulheres consigam refletir sem medo dos julgamentos. Com alguns ajustes posso dizer que meu parto foi como escolhi, com as pessoas que queria comigo, foi alegre, íntimo, foi doloroso... não foi... não deu. Mas sei que eu dei o melhor de mim naquele momento, com todos os SEs que surgem depois, sei que dei o meu melhor, aceitar a mudança de planos, encarar o medo do hospital, tive minhas batalhas, todas nós as temos, olhemos com carinho para nós mesmas.

Estou cansada dessa visão de que a mulher pariu por que “mereceu”, todas merecem! Estou cansada dessa associação de que mulher parideira de verdade tem parto com prazer, se sentiu muita dor é porque tinha travas... Tá cheio de mulher empoderada que pariu com dor, que teve partos longos, que não pariu, a vida é assim, damos o nosso melhor, e nos entregamos. Estar informada e confiante não é sinônimo de parto rápido, não é por que o parto não foi fácil [“quiabo” igual o das índias parideiras] que então é por que a mulher estava travando alguma coisa. Sejamos menos simplórias e vamos parar de dizer que a mulher não pariu por que “não se entregou o suficiente” ou não acreditava no parto. Distócias acontecem, placentas prévias acontecem, bebês bradicárdicos acontecem, 15% de cesáreas... há uma chance de que seja você.

Comemoremos sim com alegria o parto das amigas que conseguiram, sem que isso signifique deixar de acolher as que não pariram. Essa dicotomia entre partaço ou fracasso só existe em filmes americanos ruins onde tudo que há é o vencedor e o derrotado, quando na verdade a vida é feita de pequenas vitórias, e pequenos passos rumo a novos aprendizados; e uma teia de circunstâncias que nos entrelaça e nos une a todos nesse complexo evento que é parir, nascer e viver.





Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...